A OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgou recentemente um guia polêmico onde traz recomendações para a gravidez, parto, pós-parto e cuidados com os recém-nascidos. Na publicação há um capítulo onde fala sobre a “episiotomia generosa” que seria indicada em alguns casos específicos. A episiotomia, corte feito entre a vagina e o ânus da mulher no parto normal, já foi abolida por médicos que praticam a medicina baseada em evidências justamente por ser considerada uma “mutilação genital feminina”, como foi descrita em 1999 pelo médico americano Marsden Wagner, da própria OMS.
A médica Melania Amorim, que há 13 anos não faz uma episiotomia em suas pacientes, diz que o guia é defasado pois repetiu textos de 2003 e 2006. “O guia fala em indicação de episiotomia em situações absurdas como verrugas genitais, cesariana prévia, história de fórceps ou vácuo-extração em parto anterior, idade menor que 14 anos e história de laceração perineal grave”, comenta. A reportagem ainda não conseguiu contato com representantes da OMS para comentar o assunto.
Segundo ela, a publicação vai contra todas as conclusões da revisão sistemática da Biblioteca Cochrane, ou seja, não corroborada por qualquer evidência científica sólida e entra em contradição com outras publicações da própria OMS. Em uma publica de 1996, a OMS dizia que as episiotomias não poderiam ultrapassar 10% dos partos. “Com as ‘exceções’ que estão impondo ela será feita de forma rotineira”, observa.
A obstetra diz que as taxas de episiotomia já são altas e que o receio é que essa recomendação para assistência ao parto com a chancela da OMS provoque um aumento maior do procedimento que é invasivo e doloroso durante os partos. A pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, mostrou que em 53,5% dos partos normais foi com uso de episiotomia. “Dados anteriores mostravam que a episio ocorria em 90% dos partos. Na verdade o guia ameaça as mulheres em todo o mundo porque há países que felizmente, seguindo a recomendação anterior da OMS, conseguiram reduzir muito as taxas de episiotomia”, diz.
Melania comenta ainda que recentemente têm surgido publicações questionando se existe indicação de episiotomia em qualquer situação. Para ela, não há nenhum caso em que a episiotomia é necessária. Ativistas do parto humanizado começaram neste fim de semana um abaixo-assinado pedindo para que a OMS reveja e corrija a publicação.
A médica diz que o movimento das mulheres em defesa dos seus direitos fará “um escândalo”. Além de enviar um manifesto para os e-mails dos diretores da OMS, foi criada uma página no Facebook intitulada Brazilian Women Against Routine Episiotomy (mulheres brasileiras contra a episiotomia de rotina) e a hashtag whoshowmethedata (um trocadilho porque tanto pode ser interpretado como “OMS, mostre-me os dados” como “Quem me mostra os dados?”).
“Se a própria OMS publica em 2015 ‘recomendações’ tão desatualizadas e sem explicar como foram feitas, abre um precedente perigoso para que as sociedades, os conselhos e associações também sigam o mesmo caminho”, observa.
”Nossa reivindicação é que a OMS retire de circulação esse guia e que qualquer publicação posterior se baseie em evidências científicas sólidas, explicando o processo de elaboração e como se fez a busca e análise das evidências, porque não basta colocar no texto ‘este guia é atualizado e baseado em evidências’, essas evidências precisam ser apresentadas”, diz.
Vale ressaltar que mulheres que foram cortadas durante o parto relatam problemas na relação sexual e comparam a episio a um estupro por terem o órgão dilacerado. Muitas vezes o corte e a sutura são feitos sem anestesia. Para a médica, essa é uma marca que faz a mulher se sentir violada, desrespeitada. Hoje em dia mulheres têm entrado com ações na justiça pois a episiotomia, sem o consentimento da paciente, pode ser considerada violência obstétrica.